O programa Barra Pesada filmou um grupo de crianças e adolescentes limpando carros e cheirando cola, em ponto movimentado de Fortaleza. O caso ganhou destaque pelo fato de que, no momento em que as imagens eram registradas, uma viatura da polícia passou pelo local sem esboçar reação ou tomar providências. Segundo a assessoria de comunicação da Polícia Militar, a patrulha deveria ter acionado o Conselho Tutelar e Delegacia da Criança e do Adolescente, para que providenciassem a retirada das crianças da rua e o contato com suas famílias.
A questão, no entanto, tem outras implicações que dizem respeito não somente às instituições, mas ao nosso próprio modelo de sociedade. A verdade é que crianças perambulando pelas ruas, sujas e maltrapilhas, em grupos e fora da escola, esfomeadas, pedindo esmolas ou consumindo drogas não constituem novidade a ninguém. É uma visão comum, com a qual nos habituamos a ponto de incorporá-la à nossa paisagem urbana. Estão ali, onde todos sabem, nos sinais, nas portas de supermercados, nas praças abandonadas. Não raro, absortos em nossos compromissos, sequer reparamos nelas com atenção. Muito provavelmente, os policiais da notícia, embora tivessem a obrigação de ter um olhar atento e seletivo para situações como essas, foram traídos por essa displicência geral que temos para com a infância.
A filósofa alemã Hannah Arendt, ao estudar a natureza do nazismo no livro “Eichmann em Jerusalém”, cunhou a expressão “banalidade do mal” para definir uma propensão comum aos seres humanos. Trata-se da capacidade de burocratizar o sofrimento alheio, por meio de uma indiferença disfarçada de impessoalidade. É assim que, fazendo um paralelo com o caso em questão, as crianças que vivem nas ruas viram um “problema social”, assim, distante, sem rosto, uma abstração sem endereço ou nome próprio.
Vivemos anestesiados, incapazes de sentir indignação com aquilo que, para nós, apesar dos discursos bonitos, é banal, comum. Não foram somente os policiais que não enxergaram aquelas crianças. Retirá-las dali e encaminhá-las para onde pudessem crescer com alguma dignidade não é uma prioridade para gestores públicos, autoridades de segurança, magistrados, educadores, médicos e outros tantos, porque o descaso deles é, no fundo, reflexo do nosso próprio descaso.
Fonte: Blog da Janga
